Nenhuma criança pode ser deixada para trás
“Minha mãe queria que eu parasse na vírgula”. No livro que escreveu, mas ainda não publicou, Adriana Almada conta os desafios que viveu com o filho Davi para superar as dificuldades de leitura. Isabela, sua filha mais velha, também enfrentou significativos obstáculos no período escolar.
“Davi, presta atenção! A vírgula é para dar uma pausa!”, ela dizia, impaciente. Adriana não conseguia entender por que, para o filho, concentrar-se era tão difícil. Além das dificuldades no processo de alfabetização, Isabela também tinha pouca fluência na leitura. Mas ia até onde fosse preciso para tentar agradar aos pais e mostrar seus avanços. Muitas vezes, em vão.

Os pequenos Davi e Isabela
Quando ainda era bebê, Isabela ficava muito incomodada com ruídos. Adriana se lembra da primeira vez que usou o liquidificador perto da filha. Isabela começou a chorar, enquanto sua irmã dançava pela cozinha, divertindo-se com o barulho – não é preciso sair de casa para compreender que as pessoas são naturalmente diferentes.
Isabela não costumava reclamar. Era uma criança dócil e quieta. A quietude não era só timidez: havia ali uma tristeza também. Ao longo do tempo, a mãe foi compreendendo que ela via e sentia tudo de forma confusa. Era como se estivesse fora do lugar. Para Isabela e o irmão Davi, o mesmo diagnóstico: dislexia.

Isabela: uma criança dócil e quieta
Adriana reconheceu nos filhos as dificuldades que o marido havia enfrentado até os 27 anos. Decidiu não esperar que tanto tempo se passasse. Formada em Direito, iniciou o curso de Psicopedagogia, só para ajudá-los. Pela internet, descobriu informações sobre uma tal Síndrome de Irlen, mas desconfiou. Como uma simples lâmina colorida poderia ajudar uma criança a ler melhor? Ainda assim, comentou com uma fonoaudióloga que, interessada, foi a Belo Horizonte fazer um curso sobre o assunto. Voltou convencida e recomendou que Adriana levasse os filhos a BH, a fim de fazer os testes com a Dra. Márcia Guimarães.
Não foi fácil, nem mágico. Para Isabela, os testes de leitura com as lâminas de overlay não surtiram efeito. Para Davi, houve uma pequena diferença. Adriana saiu dali ainda sem acreditar no tratamento, mas impactada pelo contato com a Dra. Márcia.
Sabendo que Adriana estava cursando Psicopedagogia, a Doutora sugeriu que ela fizesse seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) sobre a Síndrome de Irlen, tendo os filhos como objetos de estudo. Não havia literatura em português sobre o assunto, mas a médica se colocou à disposição para ajudá-la. Para começar, emprestou para Adriana o livro “Irlen – Reading by the colours”, cujas páginas, com textos impressos em cores diferentes, simulam o efeito do overlay sobre páginas brancas.

Lâminas de overlay

Lâmina de overlay sobre o livro
Uma palavra por dia
Com o livro em mãos e muitas perguntas na cabeça, Adriana seguiu para uma festa na casa de amigos, em Belo Horizonte. Lá, comentou com uma amiga médica sobre a síndrome que passaria a estudar. A amiga então contou sobre uma empresária de 37 anos que, embora muito inteligente e bem sucedida, nunca conseguira ler um texto e compreendê-lo. Ia bem nas provas de matemática e nos testes orais, mas não era capaz de decifrar o que estava no papel. A moça tinha como desafio aprender uma palavra por dia, exercitando a leitura do mesmo termo centenas de vezes, se fosse preciso. Até compreender.
A noite revelaria surpresas e “coincidências”. Mais algum tempo e a empresária sobre a qual a médica havia falado aparece na festa. Impossível resistir ao impulso de aproximar-se e apresentar o livro para ela. As duas começaram a passar as páginas, uma a uma. “Não vejo diferença alguma”, repetia a moça. Até chegarem à última página, de fundo cor de laranja. “Olha o ponto, a vírgula! Olha a interrogação! Se eu visse uma interrogação, saberia que era uma pergunta!” Comoção no meio da festa. Pela primeira vez, a empresária estava vendo tudo no seu devido lugar. Confessou que chegou a pensar que era louca, por não ter a capacidade cognitiva para ver com precisão e compreender o que lia.
Não havia mais como duvidar. Adriana convenceu a moça a fazer os testes com a equipe de Neurovisão da Dra. Márcia. Sem as lâminas, ela leu com certa fluência. Mas, ao responder às perguntas sobre o texto que havia lido, não se lembrava do seu conteúdo. Já o teste com a lâmina de overlay foi impressionante: 100% das perguntas sobre o teor do texto foram respondidas.
Aquele foi um dia decisivo. Adriana escolheu seguir com o seu projeto de pesquisa sobre a Síndrome.
O benefício da dúvida
A Síndrome de Irlen é uma realidade que pode colocar em dúvida as capacidades de um indivíduo, na maior parte das vezes em períodos decisivos da sua vida, como o da formação de sua autoestima. Por outro lado, acreditar na dúvida é o que faz um bom profissional. Diante de novas descobertas em um mundo que está sempre em transformação, ele não fecha questão antes de buscar saber mais, mesmo que os novos conhecimentos confrontem outros já consolidados e aplicados. É no dinamismo da ciência que mora uma de suas maiores qualidades.

Adriana sua história: ela mesma chegou a duvidar da Síndrome de Irlen
O entusiasmo diante da descoberta
Adriana voltou para Brasília entusiasmada. Com os filhos Davi e Isabela, deu sequência ao trabalho. Como primeira tarefa, pediu que o filho lesse cinco histórias do livro “Uma história para cada dia do ano”. Deu a ele um tempo definido e o deixou com o livro e a lâmina de overlay. Mais que as dificuldades de leitura, seu desafio seria sentar-se e manter-se quieto durante a tarefa.
“Desculpa, Mãe, você pediu cinco histórias”. Adriana se emocionou. O menino que sequer lia um parágrafo inteiro estava concluindo a leitura da sétima história. Mais que isso, conseguiu se lembrar e contar com detalhes sobre cada uma delas.
Adriana entendeu que o esforço muitas vezes faz o cérebro encontrar um caminho, desenvolver suas próprias estratégias. Era o caso de Isabela. Diante da overlay, a melhora custou a aparecer – como ela sempre se empenhou para compensar as suas dificuldades, seu cérebro demorou mais a entender que agora tinha um novo suporte para ajudá-la na tarefa. É bom lembrar: estamos falando de um processamento cerebral, e não de efeitos instantâneos.
A monografia de Adriana contou com diferentes exemplos, em estágios distintos da disfunção. Ela não só foi a primeira a escrever em Português sobre a Síndrome, como ainda democratizou a informação. Construiu textos com linguagem simples, clara e acessível, a fim de não restringir o conhecimento aos acadêmicos.

Isabela com seus óculos de Irlen
No tratamento dos filhos, Adriana optou pelos óculos com filtros coloridos, além das overlays. Foi então que as coisas começaram a mudar para Isabela. Os filtros impactaram em seu comportamento e na sua compreensão do mundo e de todos ao seu redor. Ela passou a olhar os rostos das pessoas, coisa que evitava porque sempre a deixava confusa.
Ver nitidamente o rosto da mãe foi uma das cenas mais marcantes da vida de Isabela. Mais do que isso, os óculos com o filtro trouxeram tranquilidade. E levaram para longe a confusão mental que sempre a acompanhava. O primeiro passo para que algumas frustrações ficassem para trás.
A festa de 15 anos, da qual ela mesma não participou. A mãe e a avó insistiram na comemoração, mas Isabela cumprimentou a todos e preferiu ficar do lado de fora, num lugar mais quieto, escuro e silencioso. Difícil descrever o desconforto que sofria em ambientes muito iluminados, com muitas pessoas e ruídos. O tempo de isolamento, em que não tinha amigos nem imaginava para si um futuro feliz.

Isabela durante o curso DARV – Distúrbios de Aprendizagem Relacionados à Visão
Isabela conta sua história entre uma aula e outra do curso que está fazendo sobre o assunto. Ali, em meio a outras histórias relatadas, ela se lembra de quem foi um dia. Tudo está muito distante agora. Com a ajuda do filtro, ela se formou em Administração de Empresas. Abre um sorriso para contar que pretende se casar em breve. Fala dos filhos que quer ter e de como está disposta a ajudá-los a entender e superar quaisquer obstáculos.

Isabela e o namorado, Pedro Bruno
Isabela ainda sente a pressão das pessoas para que não use os óculos. Muitos a rotulam, subestimam o seu desconforto, insinuam que seja exagero. A moça de 24 anos ainda é alvo do descrédito dos que desconhecem a sua condição. O que ela tem é uma hipersensibilidade à luz. Há sete anos ela passou a usar os óculos com filtros mais escuros para proteger seus olhos de determinados espectros. Não é doença, apenas uma condição, como ter uma forte alergia alimentar. Para minimizar os efeitos da Síndrome de Irlen, já existem soluções. Para o julgamento alheio, ainda não.
Devido à desinformação das pessoas, Isabela tira os óculos antes das entrevistas de emprego. Não quer ser rotulada como quem tem “dificuldades” ou deficiência visual. Extremamente inteligente e capaz, quer ser avaliada e cobrada com o mesmo nível de exigência aplicada a seus colegas de profissão.
Sua experiência mostra que os benefícios do tratamento para a Síndrome de Irlen ainda não são suficientes. É preciso tornar a condição mais visível e conhecida, de modo a cultivar o respeito das pessoas. Tratar a doença difícil do preconceito, voltar o espelho para quem critica e julga.
Isabela sabe que pessoas como a mãe dela não estão por todos os caminhos. Por isso, também quer ser guia em outras trajetórias. O olhar que recebeu de Adriana, ela quer usar para ajudar outras pessoas a superar os desafios de aprendizagem, geralmente acompanhados dos árduos obstáculos da interação social.
Isabela pensa em quantos profissionais brilhantes sequer são contratatados, pois no exame de seleção acabam descartados, devido aos sintomas que apresentam nos períodos de maior demanda de atenção visual. São atividades que envolvem leitura por tempo prolongado ou muita concentração, como analise de planilhas, por exemplo, tanto em material impresso como no computador. Como administradora, ela quer dar as mãos para quem, como ela, poderia superar a fase de aprendizado escolar com bastante esforço, mas voltaria a enfrentar muitas barreiras na hora de entrar no mercado de trabalho. Seu foco será ajudar a combater o desconhecimento e o despreparo de empresas para identificar condições como a Síndrome de Irlen em seus colaboradores.

Isabela feliz com seus óculos de Irlen
Se o diagnóstico da SI é um caminho tortuoso, ainda cheio de obstáculos relacionados ao desconhecimento da condição no Brasil, existem inimigos que persistem depois dele. Todos relacionados ao preconceito – que é fruto da desinformação. Não bastassem os olhares que dificultam a chegada ao diagnóstico, existem os que esperam ser correspondidos em suas vaidosas expectativas.
Síndrome de Irlen: uma realidade
O maior problema de visão da Síndrome de Irlen não é de quem apresenta seus sintomas, mas dos que não a enxergam. Sintomas e relatos de crianças e pais muitas vezes são desconsiderados, desacreditados. Lâminas ou pares de óculos com lentes coloridas intrigam ou incomodam a quem não os conhece. Muitos educadores, por nunca terem ouvido falar da disfunção, sequer procuram informações sobre o assunto. Grande parte dos psiquiatras, fonoaudiólogos, oftalmologistas e neurologistas fecham os olhos para os sintomas de uma condição que está sendo estudada, diagnosticada e tratada há mais de três décadas em lugares como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Austrália e outros 42 países, incluindo o Brasil. Por aqui, ainda é um tratamento relativamente novo. E o novo pode causar estranhamento e desconfiança. Mas a função da Ciência é se colocar diante de novos paradigmas.

A família Almada: unida, feliz e no caminho certo
Gente que sai do seu lugar para se colocar no do outro
Felizmente há muitos, infinitos olhares que surpreendem por sua condescendência, generosidade e amor ao próximo. Pessoas mais apegadas à possibilidade de melhorar a vida de alguém. Profissionais dispostos ao exercício diário do aprender e ensinar. Atentos às transformações científicas. Seres humanos dinâmicos, movidos pela empatia e não pela vaidade. Olhares que amam – e que de fato veem.
Olhares como o da psicóloga Helen Irlen, que se dedicou a observar de perto e com mais atenção um conjunto de sintomas e relatos recorrentes. Graças à sua coragem, milhões de pessoas hoje podem elevar consideravelmente a sua qualidade de vida.
Agora, cabe a cada um de nós se abrir para ampliar os conhecimentos sobre a SI. Para que mais pessoas possam encontrar um diagnóstico correto, encerrando longas trajetórias de frustrações, angústias e noites sem dormir. Para que muitas crianças possam mudar de vida e encerrar maratonas de tratamentos, muitas vezes medicamentosos, que não surtem qualquer efeito positivo.
O que me motiva é saber que, felizmente, existem muito mais pessoas e profissionais que se importam. Na próxima postagem, vou contar mais histórias de profissionais que passei a conhecer nos quatro cantos do Brasil, graças à descoberta dessa tal (e real) Síndrome de Irlen.
2 Comentários
Excelente texto!! Parabens, Cris!!
Magnífica história de empatia, pensar no próximo, recomeçar e contar com a parceira familiar em prol da superação