O som do despertador interrompe seu sono. Sua mão sai tateando o criado mudo até desligar o alarme. Você sente o cheiro da chuva que caiu durante a noite. Mas é preciso abrir os olhos para finalmente acordar.
Somos seres visuais. O tato nos pede um objeto ao alcance das mãos. Para o olfato também é necessário um mínimo de proximidade, ou uma multiplicidade de aromas nos causaria náuseas. O paladar não se contenta em estar perto: é preciso tocar com a língua. Já a audição vai mais longe: do seu quarto você alcança a confusão de sons da rua, de modo que seus ouvidos já sabem: você está na cidade. Pense agora no quanto a visão vai além. No céu, você vê uma estrela a anos-luz daqui. Um desconhecido lhe dirige o olhar a uma distância considerável e é fácil perceber: é para você que ele está olhando. A visão não vai longe apenas em extensão: ela é uma observadora perspicaz. Ao olhar para uma cena, não é preciso ouvir nada para compreender se ali o clima está pesado.
Olhos são permanentemente vigilantes, alertas a todos os sinais, alardeando-nos todo o tempo sobre qualquer mínima mudança ao nosso redor. É um sentido que nos toma de tal forma, que acaba fazendo um pouco o trabalho de outros. Ver uma fruta vermelha na foto é sentir o seu aroma, pressentir o seu sabor. Rapidamente a boca se enche de água. Se alguém lhe dirige a palavra, você se vira para olhar – quando os olhos ajudam, fica bem mais fácil compreender. E o rosto de alguém que você ama fica impresso na retina de tal forma, que dispara seu coração muito antes que você possa tocá-lo. No momento do beijo, você fecha os olhos. Faz o mesmo para sentir um perfume, “sentir” uma música, experimentar um prato que prepara. Precisa fechar os olhos para dar espaço aos outros sentidos, ou a visão, gulosa, engole tudo.
A visão ocupa metade do cérebro. É nossa antena de existir, nosso jeito de navegar o mundo. Aliás, não podemos afirmar que o mundo real existe. O que vemos é uma representação construída a partir da nossa percepção. Será ela a definidora da nossa interação com esse mundo. Mas como alguém pode saber que enxerga diferente se nunca teve parâmetro para comparação?
A visão muito além dos olhos
Dislexia. Hiperatividade. Preguiça. Déficit de atenção. Teimosia. É impossível, para qualquer mãe, aceitar uma dessas palavras como um diagnóstico definitivo. No entanto, muitos médicos, terapeutas e pedagogos continuam recorrendo a elas para explicar o que parece inexplicável: uma significativa dificuldade de leitura e aprendizado que não encontra justificativas na Oftalmologia.
Diante dos muros à sua frente, as mães não se conformam. Trocam os filhos de escola. Buscam segunda, terceira e quarta opiniões. Viajam longas distâncias. Passam meses transcrevendo o material didático do filho, colocando tudo em letra maiúscula. Tornam-se os olhos de seus filhos no mundo, em vigília a fim de torná-lo mais amigável.
Nosso assunto aqui não é uma lista de “defeitos” que podem ser corrigidos com o uso de um par de óculos. Não vamos falar de miopia ou astigmatismo. Vamos falar de pessoas que têm boa visão, com ou sem óculos. Pessoas consideradas normais, porque passaram no “teste da letrinha”.

Com a Doutora Márcia Guimarães, referência em Neurovisão no Brasil
“Há momentos em que o paciente olha para você e diz algo que te deixa sem lugar, por não conseguir detectar o que ele tem”.
A fala da doutora Márcia Guimarães, Diretora Clínica e Chefe do Departamento de Neurovisão do Hospital de Olhos Dr. Ricardo Guimarães, explica a busca da especialista em Oftalmologia por um conhecimento mais amplo sobre a visão. Mestre em Biologia Molecular pela Universidade de Paris, ex-parceira do Instituto das Forças Armadas de Washington-DC, doutora em Qualidade da Visão e em Neurovisão pela Faculdade de Medicina da UFMG, professora e coordenadora de Embriologia Ocular do Curso de Ciências Básicas, Dra. Márcia também realizou pesquisas com a equipe da NASA – vários equipamentos utilizados em seus diagnósticos vieram de lá. Mas são as histórias particulares a sua maior fonte de entusiasmo. “Meus pacientes me dão lições de vida todos os dias”, completa a Dra. Márcia, referência no Brasil no tratamento da Síndrome de Irlen (SI) e de outros distúrbios da visão.
Atualmente, 42 países possuem centros de diagnóstico e tratamento da disfunção. No Brasil, ela ainda é pouco conhecida, apesar da alta taxa de incidência em todo o mundo: uma a cada sete pessoas. Uma delas pode ser você, que me lê.
Soube do assunto através do relato de uma amiga, que foi diagnosticada com a Síndrome. Não se trata de uma doença, mas de um distúrbio que, devido a essa falta de conhecimento, muitas vezes permanece oculto e sem solução. Enquanto ela me falava sobre os sintomas e contava sobre o trabalho da Dra. Márcia, minha expressão mudou. Senti-me diante de um segredo finalmente revelado: algo tão precioso, que eu deveria correr para espalhar. Decidi então usar os meus canais, não só para ajudar a tornar a Síndrome mais conhecida, mas para compartilhar as histórias emocionantes descortinadas a cada diagnóstico. Meu objetivo é ajudar a difundir informações sobre a Síndrome de Irlen e também sobre os caminhos para corrigi-la.
Imagine quantas pessoas podem ter suas vidas transformadas com o acesso a esses conhecimentos.
Uma tese de mestrado da UFMG, realizada pela fonoaudióloga Laura Niquini de Faria, em uma escola municipal da rede pública de Belo Horizonte, detectou que 17% dos alunos têm dificuldade de leitura. Outro estudo indica que cerca de 46% das pessoas com dificuldades escolares têm Síndrome de Irlen.
Mas o que é a Síndrome de Irlen?
Em poucas palavras – e elas sempre serão poucas –, é um distúrbio visual-perceptivo causado por um desequilíbrio da capacidade de adaptação à luz, que produz alterações no córtex visual. Por exemplo, distorções em materiais de leitura e escrita, que podem resultar em déficit de aprendizado e mau desempenho escolar, além de comprometer o comportamento do indivíduo e suas relações sociais. O nome da Síndrome se deve à psicóloga Helen Irlen, que realizou uma pesquisa envolvendo centenas de adultos considerados analfabetos funcionais, com foco nos sintomas “visuais” que estes adultos apresentavam. O estudo, aprovado e financiado pelo Governo dos Estados Unidos, foi apresentado à Associação Americana de Psicologia em agosto de 1983, e posteriormente confirmado através de vários outros trabalhos.
Mães incansáveis
A maior parte dos relatos tem uma mãe como personagem fundamental, ligada como um motor turbinado rumo a uma solução. Mesmo sem ter o mapa, elas sabem que devem continuar a busca. E não hesitam em tatear no escuro à procura de alívio para seus filhos. Eu já disse uma vez por aqui: “mães montam guarda ao lado de suas crias, dispostas a enfrentar tudo o que zumbir perto delas: pernilongos, lagartas, leões, gente”.
O impacto da Síndrome de Irlen na vida de crianças e adultos tende a impedi-los de competir em igualdade de condições com seus pares, seja na escola ou na vida profissional, uma vez que os sintomas se acentuam em locais lotados ou ruidosos, com excesso de movimentação, iluminação ou odores. São disfunções funcionais tão importantes quanto as físicas, mas que, por serem invisíveis, muitas vezes são negligenciadas pela comunidade – e, não raro, pelos profissionais de saúde.
A Síndrome de Irlen revela crianças e adultos com alta sensibilidade em todos os cinco sentidos, e não apenas na visão – que, aliás, não cabe somente aos olhos. É deles uma parte da responsabilidade na hora de enxergar, mas é o cérebro que completa o trabalho. E que trabalho!
Para entender melhor o universo da Neurovisão, fui conversar com a Dra. Márcia Guimarães – com que palavras eu traduziria esse brilho no olhar dela ao falar do assunto?
O mundo Irlen

Lentes espectrais
Como dá para perceber na conversa, falar sobre visão é abrir um diálogo que parece não terminar nunca. O assunto é tão rico, que escrever sobre ele com a abrangência que ele merece parece impossível. Quase me afoguei na imensidão bonita do tema, que laçou meu coração também por um outro motivo: ele atinge diretamente a autoestima. Por enxergar de uma forma diferente, e não ser capaz de verbalizar essa diferença (até por não entendê-la como tal), a pessoa de Irlen constrói a duras penas uma relação particular com o mundo, usando os recursos que estiverem ao seu alcance para se encaixar. O diagnóstico, quando acontece, vem como uma redenção, que tira das suas costas o peso e a culpa por não corresponder a todas as expectativas.
As características podem ser muito sutis, o que aumenta a possibilidade de diagnósticos equivocados, como dislexia e TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Mas, uma vez diante do diagnóstico correto, a vida de quem sofre da Síndrome de Irlen só tende a melhorar. O uso de óculos com filtros espectrais torna a visão mais confortável, ajudando a corrigir o mal estar provocado pela hipersensibilidade à luz e neutralizando os sintomas. O uso de óculos com filtros espectrais torna a visão mais confortável, ajudando a corrigir o mal estar provocado pela hipersensibilidade à luz e neutralizando os sintomas.
“Olhos veem cores. Só a alma vê o colorido.” (Hilton Rocha)
“Eu não sabia que as coisas eram tão bonitas”, disse uma criança à sua mãe, ao experimentar os óculos coloridos que acabavam de chegar às suas mãos. Cenas semelhantes acontecem em muitas famílias, para as quais as lentes literalmente fazem a vida mudar de cor.

Leonardo Corteletti
Nas próximas postagens, você vai conhecer histórias como a do Leonardo Corteletti e seus três irmãos, que enfim se viram livres das fortes dores de cabeça. Ou como a da Amanda Lopes, para quem finalmente as letrinhas pararam de voar. Histórias que vão mudar sua visão sobre o mundo e as pessoas, assim como os filtros mudaram a vida de seus protagonistas. E que com certeza vão levar você a identificar, entre amigos e familiares, possíveis portadores da síndrome – candidatos a uma vida melhor.

Amanda Lopes Ferraz e sua mãe, Leila Lopes da Silva
12 Comentários
Que belo texto Cris! De fato devemos falar mais sobre a Síndrome de Irlen e valorizar profissionais que abraçam essa causa. Tive o privilégio de trabalhar com a Drª Márcia Guimarães e vivenciar junto a ela a transformação de seus pacientes, como o diagnóstico e adaptação das lentes mudaram a vida dessas pessoas. Me emocionei por diversas vezes ao coletar depoimentos de pacientes e familiares de como eram antes e após o descobrimento da doença. Parabéns por levantar essa bandeira e ajudar a divulgar.
Que texto impecável!!! Quantas informações importantíssimas e de grande valia!!! Sensacional, obrigada Cris
Parabéns, Cris! Muito bacana e esclarecedora a postagem!!! Merece ser curtida e compartilhada ”zilhões” de vezes!!!” 😀 Muita gente tem Síndrome de Irlen e nem sabe disso – apesar de conviver com um monte de sintomas que afetam a qualidade de vida!!!
Para saber mais sobre o assunto, visite meu blog ”Sopa de Números na Educação Inclusiva” (procurar pelo marcador: Síndrome de Irlen) e veja também minha fanpage no Face, chamada ”Driblando e Vencendo a Síndrome de Irlen”. Forte abraço!!!
Que bom, Débora. Muito legal você aparecer aqui pra dar seu testemunho. Muito obrigada pelo carinho e fique por perto. Vamos juntas ajudar a divulgar essa possibilidade de melhoria de vida para tantas pessoas! Beijos.
Parabéns pelo lindo texto! Meu filho tem síndrome de Irlen, uma busca incansável pela vitória!
Eu ñ sabia dessa doença. Nunca ouvi falar.
Gostei mto das explicações. Gostaria mto de receber mais informações. Desde menina tenho sensibilidade a claridade e luzes…
mto obrigada.
Oi Maria Dulce! Consulte o site do Hospital de Olhos e siga as nossas postagens. No facebook também tem uma comunidade com muitas informações: https://www.facebook.com/search/top/?q=driblando%20e%20vencendo%20a%20s%C3%ADndrome%20de%20irlen
Em que cidade você mora?
Ola ! Tenho uma amiga que precisa de uma ajuda e de um médico que acalie seu caso em São Paulo,Capital. Poderia me indicar um profissional para diagnosticar a síndrome de irlen?
Aguardo
Oi Cibelle. Tudo bem?
Existem screeners capacitados em todo o Brasil para fazer pré-testes e, se for caso, encaminhar para o Hospital de Olhos em Belo Horizonte. Segue o link do Hospital onde você pode encontrar vários nomes de screeners na cidade de São Paulo.
http://fundacaoholhos.com.br/profissionais/?estado=sp
Espero que sua amiga encontre o caminho para o diagnóstico! : )
um beijo carinhoso,
Cris.
Meu nome é Marcela e sou Neuropediatra há 15 anos. Trabalho com Transtornos de Aprenduzagem e atendo cercar de 50 crianças por semana, pois trabalho no consultório de segunda a sexta, nos dois turnos, atendendo convênio e pacientes particulares. Estou aqui para compartilhar minha experiência e dar as pessoas q lêem este blog maravilhoso alguma ideia diferente desta, ampliando um pouco o conceito de Transtornos de Aprendizagem e Dislexia, assuntos abordados aqui. Concordo com as questões colocadas da angústia dessas crianças e dessas famílias quando há uma dificuldade ou outra característica que “tira” do contexto típico de desenvolvimento de habilidades e competências que são esperados em determinada idade. Como profissional, mas tb como mãe, me envolvo com casos semelhantes todos os dias e na totalidade dos casos, o vínculo q crio com os pacientes e seus pais, com a escola onde a criança estuda e com os profissionais que a atendem há SUCESSO e as crianças SEMPRE retomam na direção certa e encontram seu lugar no mundo. Dessa forma, atribuo a competência da abordagem neurobiologica pela medicina, terapias como pedagogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, abordagem pela psicologia além de necessidade de percepção por parte de educadores na atual “escola inclusiva” . Além desse contexto amplo e universal, a educação dos pais, orientação sobre as demandas das crianças como alimentação adequada, sono, suficiente, organização diária e estratégias para cumprir com as tarefas escolares são de importância imensa. Para ter ideia, o processo que é multidimensional e não simplista, tem cada indivíduo, cada criança, cada história de desenvolvimento como universos próprios e os tratamentos são diferenciados considerando as particularidades do cérebro humano, contexto ambiental, experiências prévias e alterações específicas de habilidades neuromaturacionais. Se prescrever lentes e óculos especiais fosse definitivo para auxiliar a criança nesse processo eu o faria. Estou no mundo da NEUROCIÊNCIA, da maior maquina já criada, de múltiplas possibilidades e inteligências. Confio no potencial de cada ser humano em evolução que entra nomeou consultórios carregando suas angústias. Estive aberta a colegas terapeutas q acreditavam no tratamento da suposta síndrome de Irlen e participei do desfecho destes casos. Posso dizer a vcs que não há essa melhora imediata, simplista, mágica, como uma ideia revolucionária que desconsidera a participação de todo esse aparato como colocado nessa matéria. NÃO HÁ! Distúrbios de processamento sensorial ocorrem em quase todos esses casos é sim.. quando reconhecidos e abordados de forma adequada são a base do sucesso de todo tratamento. O sistema sensorial é realmente complexo e definitivo na aprendizagem escolar como evento final de um desenvolvimento saudável. Fonoaudiólogos competentes mostram isso todos os dias abordando os distúrbios de processamento auditivo. Fisioterapeutas e equoterapeutas os distúrbios de processamento que envolvem a coordenação motora e pilsicomotricidade e as Terapeutas ocupacionais abordam de forma global estes distúrbios sensoriais incluindo os visuais, visto-motores. Na maioria das vezes são necessárias adaptações realmente. Como por exemplo imprimir as provas em folhas amarelas, usar marca texto em palavras chave, aumentar as fontes e os espaços nas provas e exercícios impressos. As escolas estão abertas a essas alterações desde q orientadas de forma específica e direcionada definida pelos profissionais e neurologistas e psiquiatras. NUNCA usei óculos e nem lentes especiais. TODOS os que usaram atribuíram suas melhoras a vários fatores associados e não isoladamente ao óculos que é CARÍSSIMO para os padrões brasileiros. E NÃO ATENDEU AO QUE PROMETEU. Respeito a decisão dos pais, são livres para escolher o tratamento que acreditam. Mas acho muito delicado simplificar dessa forma. Expetiência como médica, neurologista, especialista em Transtornos de Aprendizagem e mãe de uma menina de 8 anos com TDAH. Só COMPARTILHANDO mesmo minha experiência. Respeito quem pensa diferente, mesmo enganado pois a intenção de famílias que procuram o tratamento é a de ver os seus filhos felizes, seguros e desenvolvendo no seu melhor potencial. Sabedoria d discernimento para todos nós.
Texto de grande importância e grande valia parabéns Cris.
[…] de sintomas e falhas no processamento visual levaram Bárbara ao diagnóstico positivo para a Síndrome de Irlen (também chamada de Estresse Visual). Depois de iniciar o tratamento, em 2011, Bárbara enxergou o […]